quarta-feira, julho 14, 2010

Corre Carlitos, Corre!

Neste pequeno texto, e numa clara demonstração que não vivo preso a memórias do passado, vou escrever sobre um amigo.

O meu amigo Carlitos.

Eramos muito amigos na escola primária. Gostávamos muito de correr. O Carlitos corria mais que eu. O Carlitos era muito rápido. Era o mais rápido em corrida lá da escola. Era o mais rápido da escola. Ninguém corria mais rápido que o Carlitos. Dizia-se que era tão ou mais rápido que um carro. Ele próprio também se dizia mais rápido que um carro. Ele tinha a certeza que era mais rápido que o mais veloz dos carros. Era tão rápido que nem precisava de atravessar na passadeira. Tão rápido que nem esperava que os carros lhe permitissem a passagem. Tão rápido que a estrada era meramente um ponto de passagem. O Carlitos aparecia de nenhures a correr e atravessava a rua. Atravessava e pronto.

Os carros por mais perto e mais rápido que andassem nunca apanhavam o Carlitos. O Carlitos apenas tinha que correr. Correr como só ele sabia. Correr era o que o movia e o que o movia era correr.

O Carlitos corria muito bem. Mas só correr não lhe chegava. Já havia muitos com boa corrida. Boa corrida mas não o suficiente para apanhar o Carlitos. Lembremos que o Carlitos era o mais rápido. Voar era o seu novo desejo. Voar mais e melhor os outros. Voar saltando mais alto e maiores distâncias que todos. 

Mas era a voar que ainda estava a dar as primeiras pegadas.

Foi a voar que o Carlitos deu de caras com a tragédia. Corria mais depressa que os carros mas ainda não voava suficientemente alto para lhes passar por cima.

Numa rua de dois sentidos passou em corrida o primeiro carro. Sem dificuldades como era de esperar. Afinal a correr não havia carro que conseguisse bater o Carlitos. O problema foi querer voar por cima do carro do sentido oposto. A correr nada lhe batia. A voar bateu e não foi pouco. Ao saltar para iniciar o voo abrandou a sua preciosa velocidade. Velocidade que o distinguia de todos os outros. Comprometeu o seu precioso momento espaço/tempo. O tempo dilatou mas a distância era a mesma. Distância que o Carlitos sempre correu num tempo quase imedível. A alteração abrandativa foi suficiente para recordar toda a sua ainda curta infância.

Retardou o suficiente para que o primeiro carro lhe desse uma trancada. Foi uma traulitada de vingança. Uma bordoada ressabiada. Nesse dia que o Carlitos voou mais alto que todos os amigos. Era o novo campeão.

Atravessou-se no meio da estrada e nem meia estrada tinha atravessado.
Pálido, tremia e gemia.

Para além de ser o mais rápido de todo o bairro, era também o que voava mais alto. Tinha o sonho realizado. O feito foi tão grande que demorou quase um mês para recuperar. Só depois saiu do hospital. Em casa os colegas da escola receberam-no como um herói.

Desengane-se quem pensa que os seus feitos ficaram por aqui. Não! O Carlitos era também quem tinha o registo do grito mais alto de todo o bairro. E não foi só o ar a sair dos pulmões com a violência da pancada. Foi um guincho solto com muita força e querer.

Todas as ambições do Carlitos se findaram nesse dia. Tinha tantos pontos quantos a área de superfície da sua cabeça lhe permitia ter. O prodigioso número de pontos na cabeça e um crânio agora oblíquo aprisionaram-lhe os sonhos mas não a esperança. 

O Carlitos é um bom rapaz.

2 comentários:

Gonçalo disse...

Queria só deixar um comentário, mas como gostei demasiado desta história para conseguir formar uma opinião coerente, vou só aconselhar vivamente que seja lida por outros que por cá passem.

Vencislago disse...

Caro amigo Gonçalo!
Muito obrigado pelo comentário. Isto foi um estilo de "escrita" mais experimental da minha parte. Foi em jeito de composição da escola primária e assim ficou :)

Abraço