Dado que a minha vida é uma monótona pasmaceira, grande parte da acção e aventura, passa-se nos meus sonhos. Hoje, mais uma vez, não foi excepção.
Como os terramotos seguidos de tsunamis andam na moda, o meu subconsciente achou por bem que Portugal devia ter um, para não andar sempre na cauda do Mundo. Indonésia, Tailândia e Sri Lanka em 2004, Haiti em 2010 e o Japão em 2011. Cada vez o intervalo entre sismos é mais pequeno e é a vez de Portugal. Não merece a pena estar com burocracias que nos metem sempre nos últimos lugares como é costume. É meter já as mãos à obra sem mais delongas. Não conseguimos o pódio é certo, mas, dada a chamada "crise global", um quarto lugar já não é mau de todo. Aliás, até arrisco a dizer que os países exigem terramotos para poderem evoluir rapidamente. Ainda hoje o Japão teve outro de magnitude considerável. Sendo dos países mais abalados, não espanta que sejam também dos mais evoluídos e com melhor economia. Até faz sentido, quando as coisas não são agitadas, estagnam e quando estagnam apodrecem. Daí o estado do Estado Português. Parado estes anos todos, apodreceu. Vir o FMI ou o que seja, é como está a meter remédios em água estragada. Parece água boa mas continua estragada. Só lá vai com água nova e que esteja em constante movimento para preservar a sua qualidade.
Sonhei portanto que se tinha dado um grande terramoto e que estava tudo a preparar-se e à espera do tsunami. Cada um preparava-se como sabia e, como ninguém sabia como se preparar, fizeram o que sabiam fazer melhor. O que assisti, embora em sonhos, dava uma curiosa reportagem.
Das pessoas que me lembro que compareceram no sonho, sem dúvida a mais desenvolta foi a colega Priyá. Sentada no meio da estrada, desenhou uma circunferência a giz à sua volta e ficou ali impávida a beber um Capri-Sonne enquanto aguardava a chegada do tsunami.
"Oi? Não fazes nada? Estás só à espera que o tsunami chegue e te leve?", perguntei eu preocupado com a continuação da sua existência.
"Não vês que isto não é um giz normal pah? É um giz com um meio quiral...! Tem permitividade e permeabilidade menores que zero (ε<0 e µ<0), são meios duplamente negativos! A onda chega aqui e, ao incidir no meio, deflecte para fora e passa-me à volta... devias saber estas coisas." disse ela rindo-se na minha cara... E sabia, se ao invés de estar a escrever isto, estivesse eu a escrever a dissertação. Agora também já não merecia a pena... o tsunami vinha lá de qualquer das formas. Deixei-a lá esperando que as suas relações constitutivas estivessem correctas e que toda a sua despreocupação com o maremoto não tenha sido em vão.
Fui para casa para tentar salvar os meus pertences e avistei o meu amigo Uel Mig (do americano Mig, Uel) desesperado por boleia para ir para a Costa da Caparica:
"Olha o Miguel... o que fazes aqui?", perguntei intrigado.
"Estou a ver se arranjo quem me leve à casa da Costa. Tenho lá o fato de bodyboard e a prancha."
"Mas para que queres tu isso agora?"
"É a onda da minha vida... tenho que a apanhar! Ou é agora ou não é nunca..."
Com este argumento peguei no Lancia e metemos-nos à estrada. Mesmo sem seguro no carro e a circular a um ritmo desoprimido, os males que daí adviessem, não teriam impacto... afinal vinha lá algo perto do fim do mundo. Até as brigadas de trânsito devem estar a laborar coisas mais interessantes que procurar multas.
Na viagem de regresso deparei-me com a minha colega de natação. De braços cruzados, perna direita em avanço de fase face à esquerda e a fitar o horizonte como quem espera impacientemente por algo, estava ela toda equipada como se de uma aula de natação se tratasse.
"Então menina Marta? Estás aqui...?"
"Então o quê? Estou à espera do tsunami."
"E não te preparas para o tsunami?"
"Eu preparar-me? Olha que lata... O tsunami é que se tem que preparar para mim, eu vou a costas! Mas já disse ao Paulo que a seguir não faço 2x200 estilos."
Ainda aguardei um bocado julgando que me aguentava se a acompanhasse a bruços mas depois ocorreu-me que quando a Marta nada costas, é tanto inalcançável como incansável. Se ela ia a costas por certo era para nadar durante muito tempo e em velocidade. Não podia esperar por ninguém pois isso implicaria boicotar a sua própria salvação. Achei por bem não interferir com a sua determinação, ao menos salvava-se ela.
Segui caminho, para tentar chegar a casa ainda a tempo de abrigar qualquer coisa. À porta do prédio, encontrei o meu avô João. O meu avô João, visita habitual nos meus sonhos, foi sem dúvida o mais sensato. Apareceu de fato e gravata e atalhou logo conversa sem que eu conseguisse sequer cumprimentá-lo:
"Se é para receber o tsunami, então é melhor comer como deve de ser. Não é de estômago vazio e em fraqueza que a gente se mete numa coisa destas... sabemos lá nós, quando teremos oportunidade de comer bem outra vez?"
Nem questionei a veracidade das afirmações do meu avô. Se ele o disse é porque é verdade. Voltei para o Lancia, desta vez acompanhado pelo meu avô, e fomos a um restaurante perto dos Inválidos do Comércio. O dono encaminhou-nos para uma mesa com vista para o mar no primeiro andar. Escolhemos os dois Bacalhau à Brás e já trazia a empregada as travessas, o companheiro da mesa ao lado pediu uma maçã assada com ovo a cavalo. Embora o tenha feito para se meter com a rapariga, não deixou de ter piada.
De volta a casa, dado que não tinha tempo de salvar mais nada, meti na mochila o que eu achava razoável para receber este tão nobre evento: GPS, PMR, máquina fotográfica, bolachas e sandes. É então que entra a minha mãe toda lançada quarto a dentro:
"Não há cá tsunami nenhum para ninguém enquanto este quarto não estiver arrumado!"
Formidável! Tanto esforço, preparação e tempo perdido para ficar tudo boicotado só porque eu tenho folhas desalinhadas em cima da secretária. Nem sei o que é pior: se o facto de toda a gente ter tido trabalho e preocupação para receber um tsunami e agora ficar tudo em águas de bacalhau, se nem um tsunami consegue contrariar a vontade apocalíptica da minha mãe. Tantos estudos para prevenir tsunamis e para estes terem pouco impacto nas povoações e afinal bastava perguntar à minha mãe se ela fazia o obséquio de impedir a catástrofe.
O tsunami até pode vir lá de mangas arregaçadas, mas se a minha mãe não quiser que ele aconteça, nada feito.
3 comentários:
É para aprenderes! Toda gente tem um tsunami menos tu, vá para compensar, pode comer a mação assada c ovo a cavalo... onde tinhas tu a cabeça p teres escrito isto! :P
Uma das grandes lições que aprendi no IST é de que, apenas se consegue sentir a totalidade da vida abraçando a morte.
Só o simples facto de o lembrar nos dá a calma necessária para enfrentar qualquer adversidade ou cataclismo.
A Priya simboliza o racionalismo e o teu Avô a estrutura física e moral necessária.
A tua mãe é como se fosse Deus que não deixa que nada aconteça, a menos que ela o queira.
Gosto deste capitulo!
Eu acho que a explicação é bem mais simples - tu não bates bem da bola e ainda bem que assim é :)
Grande abraço
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