terça-feira, junho 26, 2007

Qualitate Di Vita

Nestas épocas é comum adormecer a pensar "tudo isto para um dia ter uma vida melhor". É algo muito subjectivo e influenciado pelo panorama de vivências de cada um. Uma coisa é certa, não há história de ninguém que tenha alcançado todos os seus objectivos. A ambição não nos permite ficar só com o que temos.

Recentemente, dei por mim a sonhar que era um turra. "Uéte?", questionei-me ainda a dormir julgando que coçava a carapinha com o dedo anelar esquerdo . Sonhei que vivia na margem de um dos grandes lagos africanos. Ou era o Tanganika, ou o Malawi. Não me lembro... a minha memória pós-sonhos não é muito eficaz em pormenores, como se pode confirmar já de seguida.


Eu na piroga.

Apesar de turra, tinha qualidade de vida. Tinha tudo o que era preciso para ser feliz: uma piroga (com um relógio despertador digital na proa que levou a viagem toda a tocar) para pescar podendo, mais tarde, trocar o peixe por carne, por milho ou por missangas e conchas para fazer colares muito bonitos.


Os colares em missangas e conchas.

Também possuía uma acolhedora cabana com as minhas três mulheres (uma para cada testículo segundo os princípios da tribo local), uns poucos filhos e, acima de tudo, um tambor de três metros de diâmetro para os rituais de lua cheia. Não percebi porque tinha tanto orgulho no relógio despertador digital mas, pode estar explicado o motivo de ter adormeci no dia do sonho.




As minhas três lindas mulheres na nossa cabana.




Os meus rebentos todos juntos para a fotografia tirada pelos senhores que vieram fazer um documentário sobre qualquer coisa sem importância.


Era uma vida em perfeita harmonia com a Natureza e sem inimigos. Apesar da vastidão das terras, não havia espaço para desentendimentos. Tinha feito as pazes com os poucos inimigos que tive. A melhor forma que encontrei para ficar tudo resolvido, foi dar-lhes onze (quem diz onze... também diz doze, não era por aí que não ficávamos todos amigos outra vez) catanadas à traição, atirando-os de seguida aos crocodilos que também têm direito a comer.



Crocodilos saciam a fominha.

Um outro vizinho menos harmónico com os demais, acabou harmonizado (para apanharem a simplicidade desta piada, harmónica é um acordeão pequeno e atarracado (apesar de também poder ser uma gaita de beiços, sem duplo sentido)) ao ser atropelado por dois elefante (que foram soltos sem querer e apedrejados e chibatados para correrem desgovernados naquela direcção). O pobre Maló, durante a trágica mas curta fuga, ainda tentou dar uma moeda a um elefante para o ver tocar no sino com a tromba mas, este não tinha sido ensinado.

Os dois elefantes e o Maló no meio.


O homem do barro foi devorado por sete hienas que estavam de passagem e, ao ver uma presa inerte e balofa, o confundiram com a carcaça inchada de um gnu deixada ali pelos leões.


Hienas devoram os restos do "barroso".

O único com quem tive alguma dificuldade em fazer as pazes foi com o mais sub-nutrido e esquizofrénico de todos os habitantes da nossa sossegada aldeia de pescadores. Era conhecido por "O Fininho" por a magreza se destacar dos demais. Irei omitir a fotografia para não chocar os mais sensíveis. Em alternativa meto a do meu primo Vergílio que está bem na vida, comprou uma piroga com motor. Ele é motivo de orgulho de toda a comunidade.


Primo Vergílio na sua piroga a motor.


Com o fininho foi uma carga de trabalhos.

O fininho era um bocado paranóico por estar sozinho na cabana, mas as regras eram bastante claras e eram para todos. Ao longo dos anos, nunca teve direito a uma única mulher no "Dia Da Sagrada Apalpação", mesmo aguentando-se até ao fim sem exprimir qualquer dor (não tinha nada para aleijar, é óbvio que aguentava a dor que não podia ter).


Este dia cheio de rituais, para todos aqueles que não o sabem, é o dia da atribuição, ou renovação, da quota anual de mulheres por homem.


Os mais jovens no ritual de iniciação.

É um dia que começa bem cedo para todos na aldeia. Os homens que se submetem ao apurado exame procuram canas de bambu junto ao rio, para protegem o seu talo do mau olhado. Perfuram transversalmente a cana numa das pontas, por onde fazem passar uma guita e, depois de colocado o tarolo na protecção a partir da ponta contrária, ata-se a guita à volta da cintura.


Eu já preparado para a cerimónia.


A partir daqui só nos resta esperar as restantes horas em pé, de braços até aos cotovelos (que estão dobrados num ângulo de 90 graus) ao longo do corpo , punhos serrados com as costas das mãos voltadas para o chão, pés afastados em paralelo, joelhos semi-flectidos e, de tomates descaídos, fitamos com enorme concentração, com uma das vistas palpitantes, o horizonte longínquo (há quem coloque uma fita à Rambo na testa para ver se ajuda a conter o sangue na moleirinha) em busca de inspiração e força.


A malta reunida em amena cavaqueira.


Como é algo muito sagrado, só me é permitir mostrar fotografias nossas momentos antes do importante acontecer.



E aqui reunidos antes de cumprir o nosso dever para com a aldeia mas sem conseguir esconder algum nervosismo.

Este ritual efectuado pelas mulheres mais velhas e de mãos mais calejadas e brutas de tanto arremessarem o malho contra o balde para amassarem mandioca, era executado com a seriedade e precisão de um artista de circo. Sobre a supervisão do feiticeiro, massajam, como quem tempera um quilo de febras para assar ou espreme limões, uma pomada na bolsa da fertilidade do homem. Tem como finalidade contar o números de tâmaras que cada homem tem. A pomada, à base de banha, alho, uma folha de louro e muito sal grosso, é feita pelo curandeiro da tribo. Muitos são aqueles que, devido à natureza violenta do procedimento e por estarem na mesma posição há demasiado tempo, lhes fraquejam as pernas e desmaiam de imediato como quem tem um ataque epiléptico fulminante. Caiem no chão totalmente desamparados e com todas as dobras esqueléticas totalmente torcidas em dor.


Os sacerdotes encontram-se reunidos a encetar a cerimónia.


Nunca foi encontrado nenhum "motivo" no fininho para ter direito a uma mulher que fosse. Acabou queimado acusado de bruxaria numa tribo pouco permeável a outros ritos que não a feitiçaria. Isto apesar de não ter feito o quer que fosse para tal, mas dizer-se homem sem nada para o provar, é porque a criatura é do mais falso que há. Mais vale queimar que remediar.


Preparação da fogueira para imolar o fininho.


Finalmente a minha terra era pacata. A única preocupação que nos assombrava eram os hipopótamos. Mas graças aos ensinamentos do Ah-Hremindo, senhor do Além Tejo, não era problema de maior. Ele sabe que os hipopótamos só atacam se não conhecerem a pessoa, ora como nós éramos todos iguais, desde que não variássemos muito o padrão do pano para cortinados usado nas nossas vestimentas, não havia problema.

O Ah-Hremindo faz criação de hipopótamos para contrabando.


A cultura de hipopótamos do Ah-Hremindo.

Vende-os aos amarelos como se fossem carne de baleia. Isto tudo através de Espanha. Assim não só foge ao penoso imposto português como ainda recebe o subsídio espanhol para jovens criadores de paquidermes aquáticos (ou seja, um cetáceo) de pequeno porte para fins alimentícios. Os espanhóis têm subsídios para tudo, nós temos impostos para tudo... estamos em pé de igualdade em termos de desenvolvimento.






É-nos difícil voltar a viver em mundos tão simples e puros.