Márinho é o "homem-futebol", o atleta do momento de quem todos falam. Ele eclipsa a própria sombra (não percebi ao certo o que escrevi mas o feito soa a grande).
Apanha o 302 na Baixa da Banheira, aonde vive com os pais, o tio e a avó materna, com destino ao Fogueteiro. O seu lugar na camionete é o mesmo de sempre: em pé junto ao motorista para trocar os habituais dois dedos de conversa. Estorva quem entra, mas está longe a má intenção.
Antes ia sempre a rasgar na sua BWS (o raio da scooter deve ter sido feita a pensar nos anões ou nos putos que andam de mota antes dos 16 anos) para os treinos. Com as chuteiras, compradas na drogaria do sr. Alberto com o dinheiro de dois natais, atadas uma na outra e penduradas à volta do pescoço lá ia ele de sorriso na cara, deixando um infindável rasto de fumo e cheiro a óleo queimado. Mas, depois de lhe a roubarem à porta de casa (um dos primos é que teve sorte, na mesma semana comprou uma mota igualzinha à dele por muito bom preço), vê-se obrigado a aceitar o caloroso convívio do tão prático transporte público.
Ainda há pouco tempo, uma senhora de meia idade que nunca se poupou na sagrada hora da refeição, ao deslocar-se no corredor da camionete, desequelibrou-se com um travagem mais repentina (louvável manobra do motorista que evitou atropelar um grupo de cinco cães que, mijando pequenos jactos de urina em tudo o que tivesse forma e existência, seguia cegamente uma cadela com cio). Com a aflição de uma queda eminente, tentou amparar-se no Márinho que, com o instinto de goleador que lhe corre nas veias, a fintou com uma simulação de ombros à Jardel. A velhota coitada, que estava de férias com a neta mais nova no Clube de Campismo de Lisboa (que raio fazia ali a velha? O CCL ainda fica longe), apesar dos inúteis movimentos desesperados dos braços (que se assemelhavam bastante a vigorosas braçadas de crawl), não evitou enfiar-se pelo meio dos bancos que nem um polvo numa estreita gruta à beira-praia, com os seus tentáculos a contornar as superfícies da rocha.
Acabou por partir a placa dos dentes e rachar bacia. Agora tem uma prótese e anda com duas muletas. O Márinho, com o seu bom coração, retira todos os meses dos seus 200 euros de ordenado, uma parte para ajudar a D. Elvira nos seus dispendiosos tratamentos.
Como qualquer outro dia de treino, toda a viagem de carreira com aquela direcção, acaba em Covas de Coina aonde o Márinho sai a correr para o campo meio pelado meio plantado do seu clube, para se adiantar no aquecimento.
A sua camisola só pode ter um número. Aliás, jogar com esse número é a única condição imposta ao clube no contrato feito pelo seu empresário (que é igualmente o padrinho de casamento dos pais). Esse número é o 76, o ano da Revolução, algo que é muito próprio, especial e importante (três palavras para dizer a mesmíssima coisa) para o Márinho. Importante será também não lhe dizer o verdadeiro ano da revolução, para não desmotivar o seu valioso espírito ganhador.
O treinador, gordo, careca e com bigode, empenha-se pelo empenho dos seus jogadores. Usa um fato de treino, cujo fecho eclair faz marreca à frente, tem duas riscas laterais brancas e é lilás e laranja. O mister gosta de observar os seus pupilos a tomarem banho, chegando mesmo a fotografá-los. Incentiva o uso do chuveiro aos pares para dar "melhor" ambiente ao balneário, traz espírito de equipa e, além disso, poupa-se água. Antes de cada jogo, o mister, que faz também de massagista, esfrega vigorosamente as virilhas dos seus atletas com chocolate líquido para bolos para os seu valiosos jogadores não ficarem assados naquela zona com o esforço. Quando se deslocam para longe (à margem norte do rio Tejo, por mero exemplo) em jogos oficiais, o Márinho é sempre o escolhido para ficar no quarto do treinador. Márinho, ingenuamente e sem saber do que se acaba de salvar, recusa sempre. Prefere a camaradagem dos seus colegas. Estar a dormir na mesma cama do mister poderia demonstrar algum favoritismo e isso só iria enfraquecer a união da equipa. Apesar do seu futebol de elite, o Márinho não treina nem joga sozinho. O Márinho dá tudo pela equipa. A unidade faz a força e o Márinho dá muita força à unidade.
O patrocínio da pastelaria de fabrico próprio, "Boca Doce", para além da saudável estabilidade financeira ao clube, traz também o pequeno almoço e lanche dos jogadores e dirigentes. Para breve espera-se uma acção publicitária para a pasta dentífrica medicinal Couto, toda ela centrada nas habilidades do Márinho.
Márinho, sempre sorridente e confiante, vai dando leves toques de cabeça na bola enquanto o locutor profere as qualidades do produto para a higiene oral dos campeões. Os telespectadores, abismados como as maravilhas acrobáticas do Márinho ficam como que hipnotizados e a mensagem é-lhes escrita directamente no inconsciente, tal como uma mensagem subliminar. Para terminar, o Márinho, sempre a fitar o olhar atento da câmara (que também é o olhar atento do espectador), com um certo ar de triunfo de quem ainda tem mais alguma para nos surpreender, ampara a bola no peito e passa-a de bicicleta ao assistente que se encontra protegido atrás do caixote filmante. "Palavras para quê? É um artista português". De salientar o perigo que é passar uma bola de bicicleta sem desviar o olhar de quem o filma. Qualquer outro Cristiano Ronaldo teria partido e dado um nó ao pescoço nesse mesmo instante.
Às Sextas-feiras à noite, vai ao "Master Bar" em Almada (não confundir com o outro de nome homofónico) para assistir ao espectáculo "He's a Lady". Apesar da variedade e de nunca terem um set repetido, é lá o poiso de uma grande estrela. Uma pavoa de nome artístico Ofélia Dná Salarga. Não que o Márinho seja grande apreciador do género, muito pelo contrário, vai com a mesma intenção dos que param para observar acidentes com feridos graves. O Márinho procura a sensação só explicável quando o horror bate à porta do choque e pede licença para entrar.
O Márinho vai para casa incomodado e, ao menos tempo, com um certo alívio de tudo aquilo não ser com ele. Por contraste, a contemplação bizarra dá-lhe um certo ânimo para enfrentar as adversidades do campeonato.
O Márinho sonha entrar um dia na ribalta de uma liga estrangeira, sonha jogar no Huelva, esse dínamo do futebol mundial.
Esperam-lhe bons anos ao serviço do Coina, com muito esforço, dedicação e suor. Espera-lhe uma transferência para o Vila Real (de Santo António) e com um golpe de sorte, ver as suas qualidade apreciadas por um observador espanhol. Será toda a impulsão necessária para o almejado salto para o Huelva.
No fim, só deseja ver o seu trabalho de uma vida ser recompensado com um simples aperto de mão do Paulo Futre, seu ídolo desde criança.
Antes ia sempre a rasgar na sua BWS (o raio da scooter deve ter sido feita a pensar nos anões ou nos putos que andam de mota antes dos 16 anos) para os treinos. Com as chuteiras, compradas na drogaria do sr. Alberto com o dinheiro de dois natais, atadas uma na outra e penduradas à volta do pescoço lá ia ele de sorriso na cara, deixando um infindável rasto de fumo e cheiro a óleo queimado. Mas, depois de lhe a roubarem à porta de casa (um dos primos é que teve sorte, na mesma semana comprou uma mota igualzinha à dele por muito bom preço), vê-se obrigado a aceitar o caloroso convívio do tão prático transporte público.
Ainda há pouco tempo, uma senhora de meia idade que nunca se poupou na sagrada hora da refeição, ao deslocar-se no corredor da camionete, desequelibrou-se com um travagem mais repentina (louvável manobra do motorista que evitou atropelar um grupo de cinco cães que, mijando pequenos jactos de urina em tudo o que tivesse forma e existência, seguia cegamente uma cadela com cio). Com a aflição de uma queda eminente, tentou amparar-se no Márinho que, com o instinto de goleador que lhe corre nas veias, a fintou com uma simulação de ombros à Jardel. A velhota coitada, que estava de férias com a neta mais nova no Clube de Campismo de Lisboa (que raio fazia ali a velha? O CCL ainda fica longe), apesar dos inúteis movimentos desesperados dos braços (que se assemelhavam bastante a vigorosas braçadas de crawl), não evitou enfiar-se pelo meio dos bancos que nem um polvo numa estreita gruta à beira-praia, com os seus tentáculos a contornar as superfícies da rocha.
Acabou por partir a placa dos dentes e rachar bacia. Agora tem uma prótese e anda com duas muletas. O Márinho, com o seu bom coração, retira todos os meses dos seus 200 euros de ordenado, uma parte para ajudar a D. Elvira nos seus dispendiosos tratamentos.
Como qualquer outro dia de treino, toda a viagem de carreira com aquela direcção, acaba em Covas de Coina aonde o Márinho sai a correr para o campo meio pelado meio plantado do seu clube, para se adiantar no aquecimento.
A sua camisola só pode ter um número. Aliás, jogar com esse número é a única condição imposta ao clube no contrato feito pelo seu empresário (que é igualmente o padrinho de casamento dos pais). Esse número é o 76, o ano da Revolução, algo que é muito próprio, especial e importante (três palavras para dizer a mesmíssima coisa) para o Márinho. Importante será também não lhe dizer o verdadeiro ano da revolução, para não desmotivar o seu valioso espírito ganhador.
Item de coleccionador raríssimo e de valor inestimável autografado pelo Márinho.
O treinador, gordo, careca e com bigode, empenha-se pelo empenho dos seus jogadores. Usa um fato de treino, cujo fecho eclair faz marreca à frente, tem duas riscas laterais brancas e é lilás e laranja. O mister gosta de observar os seus pupilos a tomarem banho, chegando mesmo a fotografá-los. Incentiva o uso do chuveiro aos pares para dar "melhor" ambiente ao balneário, traz espírito de equipa e, além disso, poupa-se água. Antes de cada jogo, o mister, que faz também de massagista, esfrega vigorosamente as virilhas dos seus atletas com chocolate líquido para bolos para os seu valiosos jogadores não ficarem assados naquela zona com o esforço. Quando se deslocam para longe (à margem norte do rio Tejo, por mero exemplo) em jogos oficiais, o Márinho é sempre o escolhido para ficar no quarto do treinador. Márinho, ingenuamente e sem saber do que se acaba de salvar, recusa sempre. Prefere a camaradagem dos seus colegas. Estar a dormir na mesma cama do mister poderia demonstrar algum favoritismo e isso só iria enfraquecer a união da equipa. Apesar do seu futebol de elite, o Márinho não treina nem joga sozinho. O Márinho dá tudo pela equipa. A unidade faz a força e o Márinho dá muita força à unidade.
O patrocínio da pastelaria de fabrico próprio, "Boca Doce", para além da saudável estabilidade financeira ao clube, traz também o pequeno almoço e lanche dos jogadores e dirigentes. Para breve espera-se uma acção publicitária para a pasta dentífrica medicinal Couto, toda ela centrada nas habilidades do Márinho.
Márinho, sempre sorridente e confiante, vai dando leves toques de cabeça na bola enquanto o locutor profere as qualidades do produto para a higiene oral dos campeões. Os telespectadores, abismados como as maravilhas acrobáticas do Márinho ficam como que hipnotizados e a mensagem é-lhes escrita directamente no inconsciente, tal como uma mensagem subliminar. Para terminar, o Márinho, sempre a fitar o olhar atento da câmara (que também é o olhar atento do espectador), com um certo ar de triunfo de quem ainda tem mais alguma para nos surpreender, ampara a bola no peito e passa-a de bicicleta ao assistente que se encontra protegido atrás do caixote filmante. "Palavras para quê? É um artista português". De salientar o perigo que é passar uma bola de bicicleta sem desviar o olhar de quem o filma. Qualquer outro Cristiano Ronaldo teria partido e dado um nó ao pescoço nesse mesmo instante.
Pasta dentífrica Couto.
Às Sextas-feiras à noite, vai ao "Master Bar" em Almada (não confundir com o outro de nome homofónico) para assistir ao espectáculo "He's a Lady". Apesar da variedade e de nunca terem um set repetido, é lá o poiso de uma grande estrela. Uma pavoa de nome artístico Ofélia Dná Salarga. Não que o Márinho seja grande apreciador do género, muito pelo contrário, vai com a mesma intenção dos que param para observar acidentes com feridos graves. O Márinho procura a sensação só explicável quando o horror bate à porta do choque e pede licença para entrar.
O Márinho vai para casa incomodado e, ao menos tempo, com um certo alívio de tudo aquilo não ser com ele. Por contraste, a contemplação bizarra dá-lhe um certo ânimo para enfrentar as adversidades do campeonato.
O Márinho sonha entrar um dia na ribalta de uma liga estrangeira, sonha jogar no Huelva, esse dínamo do futebol mundial.
Esperam-lhe bons anos ao serviço do Coina, com muito esforço, dedicação e suor. Espera-lhe uma transferência para o Vila Real (de Santo António) e com um golpe de sorte, ver as suas qualidade apreciadas por um observador espanhol. Será toda a impulsão necessária para o almejado salto para o Huelva.
No fim, só deseja ver o seu trabalho de uma vida ser recompensado com um simples aperto de mão do Paulo Futre, seu ídolo desde criança.
Paulo Futre Total.
O Criador lançou à Terra um prodígio futebolístico destes (o Márinho) e nós só temos que agradecer assistindo ao milagre das suas exibições.