quinta-feira, janeiro 24, 2013

A Professora da Primária

A minha professora da primária veio do tempo da outra senhora. Havia bastante respeito pela professora Jacinta. Respeito esse que se intrometia com facilidade no pavor pelo castigo.


Não se podia ir à latrina, era sempre desculpa dos cachopos para não estarem na aula. Ir aos lavabos era uma versão mais grave de algo mau, que era ir ao recreio. Não só porque era durante o tempo da sagrada aula, como podiam ir tocar nas partes e isso é pecado, mesmo quando é para ir aliviar necessidades fisiológicas. Por este mesmo motivo, ocorreram vários acidentes. O Ricardo insistiu repetidamente e com algum nervosismo (e em cada repetição, ele insistia nervosamente) que queria ir à casa de banho Recebeu sem aviso um belo estalo de pouca velocidade mas de elevado momento, que lhe deixou a cara a palpitar entre o frio ártico e o calor vulcânico por estar a ser chato "vais depois no intervalo e se continuas nesse cismar, nem ao recreio vais". A consequência, o dito e conhecido "fazer nas calças", era sempre um mal menor que o eventual castigo.


Antes do intervalo, a sala começou a cheirar a café borrado com restos de sopa de couve lombarda e adubo industrial. O Ricardinho estava muito calado e com uma poça de mijo denunciadora à volta. Descobriu-se, como se não fosse evidente o suficiente, que se tinha cagado todo e voltou a acolher na cara um maduro banano por "então e não sabias pedir para ir à casinha de banho para ir fazer cócó seu porco?".

Humilhação total! Estar todo borrado, a chorar com soluços e ainda levar um estaladão no focinho. No fim, ainda ter que aguentar sentado em cima de um pastel frio como a angústia de ter toda a turma a olhar para ele.


Lembro-me também do dia da árvore, o qual nos trazia medo de um acesso de disciplina incontrolável por parte da Sr.ª professora Jacina. Afinal, tratava-se de um dia diferente dos outros. Plantar árvores no dia da árvore onde se promove a união com a Natureza e a harmonia entre os humanos, alimentava também um monstro personificado pelo castigo por fazermos algo que desconhecíamos que era errado.

Depois de plantada a nossa árvore, uma alegria quase divina apoderou-se de todos nós. Apenas a conseguimos exprimir correndo com uma felicidade capaz de acalorar o coração mais indiferente. Corremos com o mesmo cansaço que um inválido aquando sobre ele se manifesta um milagre que lhe recupera todas as suas faculdades motoras: nenhum. Que bonito, estávamos a ajudar a Humanidade. Chegado ao destino, a porta da sala, esperámos que esta fosse aberta. Qual não é o nosso espanto quando fomos obrigados a ficar à porta da sala, enquanto os outros continuavam no recreio, com direito a um saco da Junta de Freguesia da Ameixoeira com um rico farnel lá dentro: Capri-Sonne, pão de leite misto e caramelos de fruta Circo. Estávamos a ser excluídos sem sabermos o motivo.

Foi o primeiro exemplo claro na minha vida, de como se propaga uma onda. De início, estávamos todos encostados à parede, numa situação estacionária portanto. Todos com aquela euforia nervosa de quem se encontra na incerteza do que lá vinha a seguir, mas o que era, não era bom. Não era bom mas era inevitável. Após a aplicação do devido punitivo ao primeiro da fila, a emissão de um impulso, era óbvio o que vinha lá. O primeiro berrava de dor, o segundo chorava por simpatia ao primeiro. O terceiro estava só apreensivo mas, por osmose, já sentia a mão a arder. Do quarto para frente, ainda dava para rir e aumentava o riso, quanto mais afastados dos primeiros se estava.  A onda propagava-se.
Três reguadas estavam sempre garantidas. Caso alguém se fizesse de forte e tentasse não chorar, libertando apenas um "ai!" irreprimível, então a carga aumentava em número e intensidade. Acabam todos a chorar, velocidade de fase vs velocidade de grupo, só precisam de mais ou menos incentivo.


Os “outros”, que nos viam como os outros, da turma assistiam sentados e sorridentes, com um gozo, altivez e deleite estampados na cara, por terem sido "bonitos", bem comportados e estarem do lado da Sr.ª professora. A satisfação ao verem o nosso merecido castigo, era evidente. O regime protege e favorece quem pactua com ele e promove o inbreeding. Fantástico, começa-se de tenra idade a moldar cabeças.
Aos “outros”, espero que estejam a ter uma vida miserável, sem perspectivas de alegrias futuras ou ambições (sejam elas grandes ou pequenas). Isto para haver justiça contra a injustiça.


Houve também um concurso de guitarras no espaço da cantina. Mas só pude ir ver porque a Sr.ª professora não deixava participar, a turma dela só tinha meninos disciplinados à antiga, ou um bonito conjunto de potenciais imbecis. Estar a tocar “A Minha Casinha” dos Xutos & Pontapés em guitarra de ar, é uma descida na montanha russa que nos leva à heroína. Apesar da participação em massa da população cigana da escola no concerto, ganhou uma miudinha da primeira classe. Tocava que nem o Pete Townshend das guitarras de ar. Levámos um mês com medo do recreio e dos ciganos que nele andavam em patrulhas a fazer cobrar ao caroulo o concurso perdido.


A quantidade de porrada de régua de madeira que levávamos na mão era também proporcional à pobreza e à profissão dos pais. Igualdade de oportunidades o tanas. A partir do dia em que se soube qual a (profissão) do meu pai, passei de um extremo ao outro da escala. As notas novas, também se afastavam em espelho das antigas. Passei a ser convocado para fazer de juiz com a nobre de missão resolver conflitos no recreio. Obviamente que já dessa idade a lei estava para os ciganos, como a água está para o azeite, um não se entranha no outro.

Lembro-me também do meu amigo Daniel. Bom rapaz mas propenso à estupidez em igual quantidade. Olhou para a janela em busca de fuga para a aborrecida aula. Viu a Lua quase cheia, visível a olho nu em plena luz do dia e gritou: 

"Aííí vejam todos! Um planeta!" - e todos correram, movidos pelo fascínio de tão misterioso astro que se deixava avistar. Todos menos os “outros”.


"A Lua não é porque a Lua só aparece à noite!" -  disse o Carlitos, que além de muito rápido na corrida, era também muito inteligente, até andava com dois relógios, um digital para ver as horas e um analógico para ver quanto tempo faltava para as horas certas. Todos concordaram imediatamente com a pertinência e assertividade da observação.


Esse nosso espírito cientifico e gosto pelo desconhecido e pela sua descoberta, foi rapidamente interrompido por uma camada homogénea de reguadas em cada uma das mãos. Por vezes ainda comparo esta relação da professora Jacinta com os seus alunos, com a Inquisição e as grandes mentes que provaram a cicuta por terem sido contrárias aos escritos bíblicos.