domingo, junho 22, 2008

Um Passeio em Madrid

Existem no Mundo inteiro, dois grupos não disjuntos de pessoas:

- Os que não gostam de espanhóis;
- Os espanhóis;

Digo não disjuntos porque existem espanhóis com ódio de morte a espanhóis. Ora como não pertenço ao segundo grupo, forçosamente pertenço ao primeiro.


Em Março, fui a Madrid com esse profundo e marcado sentimento dentro de mim:

"Não gosto de espanhóis e não é agora que vou mudar de opinião."

Aliás, mais que uma opinião, era uma certeza irrefutável. Este blog não é de opiniões, como se poderá acreditar pela generalização dada pela comunicação social aos blogs. Aqui só encontraram certezas inegáveis e verdades absolutas. Claro está que poderá implicar que os outros estão todos errados. Mas, ao escrever estas humildes linhas, estou a dar-lhes a oportunidade de corrigirem o seu conhecimento. Isso de se ter opinião é dar a possibilidade de se estar errado e de se poder voltar atrás na palavra. Eu tudo o que penso, sei que é assim e que estou certo. Que sentido faz pensar-se errado? Já que tenho que pensar, que o faça bem e à primeira.


O problema com os espanhóis é que sabem dar-nos a volta. Se durante o fim de semana em que cheguei, ainda defendia as minhas convicções com a fé que nada as ia mudar, durante a semana o inabalável sofreu um abalo dantesco e nem me cheguei a render, fiz-me logo amigo do inimigo.

Viriato: O meu estado de espírito à partida.

Se em Guantanamo usam a tortura física e psíquica, em Madrid recorrem ao seu inverso para nos maniatar e manipular. Cheguei a ficar desiludido comigo mesmo logo no primeiro dia em que fui almoçar à cantina da faculdade. Garanto-vos que lutei com tudo o que tinha. Mas, mal olhei para a quantidade e qualidade da comida, deixei as resistências combativas perderem o folgo. Filetes de linguado e uma carne estufada suculenta. Para sobremesa comi sempre leite creme com uma bolacha em cima. Tinha uma substância qualquer altamente energética e aditiva. Até os copos eram do tamanho de jarros de água como se pode ver pela fotografia colocada imediatamente abaixo.

Alarves enchem o bucho de forma desmedida.

Entreguei-me por completo. Ao segundo dia já nem me lembrava que no dia anterior tinha ficado desiludido comigo. Já estava totalmente convertido. Não subestimem os espanhóis na arte de nos dar volta à cabeça, eles são bons.

Lamento dizer-vos mas, se fosse obrigado (para não parecer que fui para o covil inimigo de boa vontade) a estar lá mais uma semana e se o nosso Benfica fosse espanhol, também eu me tornava espanhol por completo. Eles bem tentaram a sorte ao enviarem o Quique Flores. Sacanas... fazem jogo sujo mas não ganharam.


Quique Flores na Catedral da Luz.

Fosse só a comida da cantina. Deviam ver os meus aposentos. A casa de banho era mais do que uma simples retrete fria, húmida e escura com um bacio e uma tina com água para se lavar a cara, os sovacos e as partes pecaminosas. Era uma réplica da casa de banho do Rei D. Juan Carlos.

Vista exterior da minha casa de banho.

Era tão grande que, ao longo do percurso, tinha cerca de cinco plantas com indicações para as saídas de emergência e uma circunferência a assinalar o local onde me encontrava. Não percorri toda a casa de banho por isso julgo que existiam mais que cinco mapas.

Vastidão faraónica (reparem na toalha para os pés à entrada da banheira).

A sanita estava sempre impecavelmente limpa a ponto de eu acreditar que os outros nunca a usaram. E que agradável era sentar-me no trono de porcelana de pernas totalmente esticadas enquanto ouvia Julio Iglesias em versão "pan pipes", que passava repetidamente como música ambiente (sim, a casa de banho tinha música ambiente).

Duplo lava caras em mármore e toalhas duplas.

Nada melhor para exorcizar mentalmente o quotidiano madrileno. Bastante relaxante. Isto de ter as pernas esticadas tem um significado especial.

A minha repousante poltrona de porcelana.

Os colegas que, ou por serem feios ou por se terem portado mal, ficaram noutros alojamentos, para se conseguirem sentar na sanita, ou tinham que ficar de lado, ou se sentavam de pé (devo confessar que nunca tentei mas deve ser coisa para sujar as pernas todas até aos calcanhares) ou então, só lhes restava enterrar os joelhos e a testa na porta.

A parede em contraplacado, apresenta uma depressão para apoiar a testa durante o esforço (pormenor não visível na foto).

Tal como toda a minha casa de banho imperial, também a banheira era em pedra mármore e tinha um botão para regular o tipo de água e outro para a temperatura. Eu dei-me bem com a combinação "queda de água nas Honduras" a "23.5ºC", muito agradável e revigorante.

Botão de regulação do chuveiro.

E o quarto onde eu estava? Eram tão vasto que era imperativo recorrer ao telemóvel para se conseguir saber se estava mais alguém lá dentro. Se alguém de outra cama estivesse a morrer e gritasse por ajuda, ninguém o conseguia ouvir. O que era bom, se aquele estava a morrer, era certo que a Morte, carregada com a foice, vestimentas pesadas e sei lá que mais, não se ia dar ao trabalho de ir correr meia maratona para ir ter comigo. Se algum colega de quarto fosse "esquisito" (estava lá um francês por acaso, mas pareceu-me bom rapaz) e me quisesse violar durante a noite, quando chegasse ao pé da minha cama, já era hora de almoço do dia a seguir e eu já não estava lá, estava na cantina por essa hora. Eu sabia que podia dormir descansado, e era isso mesmo que fazia.

Cama isolada das demais para evitar "mal entendidos".

Consta-se que noutros "hotéis" que não o meu, as camas estavam tão próximas umas das outras que se alguém estivesse a esfogachar no quarto, se sentia a coisa tão de perto que chegava a amplificar as oscilações à escala de um tremor de terra. Disse-me-o um turco de confiança que acordou em sobressalto a meio da noite, que por instinto protegeu a cabeça para evitar que lhe caísse uma telha de amianto em cima.

Como o chão era almofadado andávamos sempre descalços com medo de o estragar. Também o quarto tinha regulação de ambiente. O botão ia desde "verão na Somália" a "inverno na Escandinávia". A opção "tempestade árctica" estava bloqueada e era apenas disponibilizada a entendidos. Fomos a votos e acabou por se regular para "fim da primavera nas Ilhas Fiji". Empregadas curvilíneas de roupa apertada (um número abaixo do justo), faziam-nos a cama e dobravam-me o pijama. Mais que isto não faziam porque apenas tínhamos pago o pacote "student basic". O que vinha a seguir, o "student luxurius" permitia-nos tocar nas empregadas. Assim só dava para as cheirar ao de leve.

O quarto em si tinha uma enorme varanda com vista para o Parque del Oeste.


Vista da varanda sobre o Parque del Oeste.

Era um belo jardim habitado por animais exóticos em liberdade. Vi algumas águias reais, um ninho de bufos carecas, um pequeno grupo de sagüins gritadores de cauda laranja e um lagarto de bossas marroquino entre outras espécies invulgares. Os únicos animais que alguma vez estiveram enjaulados foram anões alimentados a maçãs e amendoins que, em tempos já idos, conseguiram fugir e agora são uma praga invasora na cidade de Madrid que tem devorado outras espécies endémicas.

Saguim gritador de cauda laranja e bigode à mestre de Kung-Fu.

Convido os colegas de outras hospedarias a descrever os seus aposentos. Quem dizer que os seus quartos não tinham janelas nem serviço de quartos, que dormiam todos em beliches e que o espaço total era mais pequeno e abafado que a minha casa de banho... mente e deve ser severamente castigado.

Eu até tinha maçãs frescas colocadas todos os dias no local dos rebuçados e rebuçados no local da publicidade.

"Ah e coiso e tal mas nós tínhamos internet à borla...". Que mania essa de impor as coisas às pessoas. Era como se estivesse a chover dentro dos quartos, levavam sempre com água em cima mesmo não sendo essa a sua vontade. Nós não, se nos quisemos molhar, íamos à esplendorosa casa de banho. Tal como noutro qualquer de qualidade, se quiséssemos internet, pagávamos e tínhamos internet. Isto para não falar no "pequeno-almoço" que eram obrigados a comer a horas impostas, tudo ao género dos presidiários. Eu era livre de fazer as minhas escolhas, com um frigorífico e microondas no quarto, as combinações possíveis são infinitas.


No entretanto já voltei a casa e, consequentemente, à "minha" cantina, que me recebeu com o tratamento de choque que seria de esperar para me lembrar de como são feitos os maxús (explicação para não confundir com os machos dada algures neste blog).

Fiquei triste. Quando cheguei a Madrid a festa de recepção foi um acontecimento inesperado. Tinha o PSOE em força, com o seu recém-eleito primeiro ministro espanhol, com uma magnifica parada para me receber. Com champanhe e televisão em directo. Aliás, o Zapatero adiou o acto de ser eleito para que a sua primeira acção como presidente, fosse saudar e agradecer a minha chegada. Eu é que agradeço tamanha hospitalidade, simpatia e amabilidade.

Zapatero dirigindo-se a mim no seu discurso de boas vindas.

Quando cheguei a Portugal nem um Jorge Sampaio, nem um Carmona Rodrigues, nem um Paulo Portas e nem mesmo um Gilberto Madaíl estavam presentes para me acolher. Nem o Arthur Albarran apareceu para fazer uma reportagem exterior. Em suma, nenhuma figura do poder em Portugal esteve disponível para assistir ao meu regresso.

E eu que estive este tempo todo convencido que a única coisa boa que o nosso país vizinho alguma vez teve foi a Inquisição...