domingo, janeiro 24, 2010

Promotionis Divinis

Na Idade do Ferro, as coisas funcionavam bem. Era uma sociedade justa.

A razoabilidade imperava e não existiam castigos nem punições. Aqueles que deviam ser condenados, seja por terem cometido algum crime, pecado, acto cobardia ou mesmo condenados injustamente por mera vingança pessoal, eram simplesmente promovidos a serem sacrificados para agradar os Deuses. Em vez da vergonha, era uma honra para toda a família. Ao invéz da humilhação, um motivo de admiração e orgulho pelos demais pelo seu derradeiro sacrifício.

Que revolucionária e magnânima idea. Dar alguém a sacrificar contra a vontade do próprio. Se a pessoa não se voluntariava para a oferta solene à divindade, era condenado por enfurecer os Deuses na forma tentada. Tinha então a pena adequada, ser sacrificado. Não havia volta a dar ao Destino Divíno. Era a única maneira de se conseguir fazer as pazes com as Forças Ocultas que regem as Leis Aleatórias do Universo.

Era um acontecimento bonito e uma causa nobre. Fazia-se uma grande festa em honra da oferenda humana. Coisa para durar mais de um dia. No fim e para terminar a festividade, o áuge de toda a comemoração. O anfitrião era sacrificado. Era o extase para todos os presentes. Uma excitação fisiológica tão violenta que mais se assemelhava à ejeculação numa gigantesca orgia colectiva.

Não era coisa de enforcar e dar por terminada a procissão. Era algo pensado e tinha método e rigor. Começava-se por cortava os pés bem rente para o anátema não voltar a andar sobre esta Terra. Não era para ele não fugir a meio, como se possa pensar. Era mais uma garantia que tudo ia correr pelo melhor. De seguida também as mãos era decepadas para o indivíduo ir de mãos a abanar (literalmente) para o Paraíso. Isto no sentido em que não se podia agarrar ao que é terreno. Ou seja, não se agarraria a nada deste mundo, para que nada o prendesse à profana vida terrestre. Ia livre para abraçar o que o Outro Mundo lhe tinha reservado. A seguir era decapitado lentamente por nenhum motivo em especial. Só porque a faca era pequena e romba e, já que estava suja e era preciso lavá-la de qualquer das formas, aproveitava-se a deixa.

Engana-se quem pensar que era tudo feito com uma qualquer faca vulgar. Não! Era usado um bonito e ornamentado punhal abençoado e furjado por um ou mais sacerdotes devidamente credênciados. Depois, na ferramenta divina, eram encrustadas conchas trazidas por viajantes, também eles convidados a agradar os Deuses, pedras coloridas e inscrições sagradas. Geralmente vernáculo ordinário porque eram raros os que estavam à vontade com a ainda recente ciência da escrita. Os sacerdotes limitavam-se a copiar textos que, também eles, já tinham sido copiados de outrem, perdendo-se o rasto ao verdadeiro significado da estranha combinação de letras.

Mais tarde, o coração era arrancado, triturado e espalhado pelos campos de cultivo como uma oferenda aos Deuses da Fertilidade. A rigor era mais para os pardais e corvos terem qualquer coisa que comer que não as valiosas sementes de cereais.

Para terminar, os restos mortais eram colocados cuidadosamente a descansar enterrados num pantano, para, um miléno mais tarde, serem descobertos nos campos de turfa da Escandinávia.


Homem de Tollund. Voltaram a meter-lhe a cabeça no sítio só para a fotografia ficar bonita.

Os nossos antepassados eram pessoas muito sensatas, sábias e equilibradas.

Era com muito gosto, comoção e até alegria, que assistia à promoção divina de alguns meus conhecidos. Eu mesmo os convidava para a nobre e sagrada distinção. Só não digo quem porque, ora não fiz as cadeiras que "leccionam", ora para não dizerem que gosto mais duns do que de outros. Não quero ser acusado de graxismo para posterior favorecimento. Dava-lhes esse prazer por respeito e estima, não para proveito próprio.

Para variar, e porque os tempos também já são outros, podia adicionar-se à colecção uma cabeça mas de cabelo encaracolado.

Na presente Era da Humanidade o mais razoável que se arranja é sermos os beneficiários do seguro de vida no nome de alguém e depois dar-lhe arsénico. A única dificuldade é fazer o dito seguro a nosso "favor" sem a outra pessoa, por quem temos inestimável estima, saber. Depois é convencê-la a beber o refresco bem bom de sabor acre.