terça-feira, maio 04, 2010

Sumol e o Seu Meio Irmão

Todo o bom chefe de mesa ou empregado de balcão sabe que pedir Sumol é para trazer logo um Sumol de laranja, nem sabe da existência de outro. Não sei bem o que é um "chefe de mesa", usei a expressão para não repetir a palavra "empregado". Podia ter começado de outra maneira, por exemplo "Todo o empregado de mesa ou de balcão (...)" mas depois a palavra balcão ficava meio sozinha e nenhum balcão sozinho é digno de confiança da clientela. Continuando...

Qualquer pessoa nascida no início da década de 80 ou anteriores, sabe que só existe um único Sumol. O Sumol original. Tirando um ou outro mais bem nascido, para nós, tal como praia significa Costa da Caparica, sumo é Sumol e Sumol é o de laranja. Não nega ter ouvido falar, por intermédio de um conhecido de um amigo, de uma outra bebida com o mesmo nome, mas de outra orientação palatina. Agora daí a tê-la experimentado alguma vez, vai um salto quântico.

Um Sumol não é só um simples Sumol, é mais que isso.
O Sumol é a cerveja das crianças.

A minha avó ia estoirar a reforma para a quermesse das rifas e o meu avô levava-me a tasquinar para junto dos seus amigos. Todos eles diziam asneiras e palavrões. Tinha que ser assim. Eram homens a conviver com outros homens e nenhum podia dar a entender que era menos homem que o outro.

O meu avô bebia uma imperial para empurrar um coirato no pão que teimava em não desenrijar. Eu bebia um Sumol para desembuchar uma bifana que insistia em continuar uma peça única de carne. Não adiantava morder com muita força, só me aleijava. Após a primeira dentada a febra vinha irremediavelmente inteira e agarrada aos dentes. Era obrigado a comer a carne toda de rajada. Ao fim de três dentadas, já só havia carcaça humedecida pelo calor e suco de bifana e, claro está, muita mostarda. Sempre foi assim e não havia volta a dar. Mais tarde fiz a introdução ao coirato através da entremeada.

O meu avô não estava mais que a passar-me o pelouro de adulto para que ele pudesse voltar a ser criança. Tinha essa missão. Existia uma cumplicidade e troca de papeis: o neto estava ali para se portar como um homenzinho pois estava ao pé do avô e o avô agia que nem uma criança por estar com o neto.

Na teoria, esta troca de papeis não faz sentido mas, uma vez visualizada a cena em toda a sua dimensão, torna-se óbvia. É uma situação em tudo idêntica ao Canal do Panamá, onde o Oceano Atlântico está a Oeste do Oceano Pacífico, dito não faz sentido mas, uma vez consultado o mapa, compreende-se a coisa.

A nossa idade mental é uma função sinc centrada no meio da nossa vida. Começamos e acabamos nas mesmas condições. A partir do ponto de maior maturidade mental e social, há uma simetria com tudo o que já se passou para trás. Percorre-se o caminho inverso para constatarmos que  acabamos outra vez crianças. Só é pena esgotar-se metade da vida a tentar crescer para depois se axiomar que é muito mais engraçado e agradável ser-se criança.

Se fossemos todos crianças certamente não existiriam guerras, apenas pequenas batalhas. Num dia andávamos todos à tareia à porrada, no outro éramos os melhores amigos para sempre.

É angustiante que esta passagem de testemunho de avô para neto, seja oficialmente selada com o conjugado de um nascimento e uma despedida eterna.


Lembro-me com saudade, do cenário habitual ao pedir o que queria ao sr. Virgílio durante as festas populares no CCL da Costa da Caparica:
- Então o que vai ser?
Perguntava ele.
- Eu quero um s'mol.
Aprontei-me a dizer.
- Eu cá quero de ananás!
Disse o David, desconhecendo que daquele momento a 20 anos, podia casar-se com outro que pedisse Sumol de ananás. A coisa não correu bem. A qualquer um que pedisse uma coisa assim mais "tropical" e "com calores", o sour Vergílio mandava logo aquele ar de "eu vi logo que este quando crescer vai dar em paneleiro". Retorcendo as palavras por entre os dentes, bramiu:
- Pois, de ananás não tenho... Querem fresco ou natural?

Era necessário meter uma certa atenuação neste "fresco ou natural". Se pedisse natural, vinha morno por estar perto do fogareiro (geralmente era um bidão de óleo de 225 litros cortado ao meio e umas vigas de aço soldadas a fazer de grelha). Se pedisse fresco a conversa era outra:
- Está fresco mas foi acabado de meter na geladeira, não está muito frio...
Que é como quem diz:
- A lata já lá está desde o ano passado, a arca é que tem o motor gripado.

O meu avô sempre foi uma pessoa sem preconceitos, afinal viveu muitos anos em Angola mas, o que certo é que, desde o momento em que pediu Sumol de ananás, nunca mais brinquei com o David.
- Não te quero ao pé desse, tem um pico a azedo... dali não vem coisa boa.
Avisou-me o meu avô. Nunca perguntei o motivo de tal imposição, mas senti que a coisa era grave.

O pai do David ficou tão assustado que, a conselho de vários amigos, internou-o nos Pupilos do Exército para ver se ainda ia a tempo de fazer dele um homem. Nunca mais vi o David.