sexta-feira, dezembro 13, 2013

Hung'Em Games - Parlamento

Se eu ganhar €100,000,000,00 vem o Estado e fica-me com €20,000,000.00 para se auto-alimentar. Pois bem, eu pegaria noutros 20 milhões e criava uma milícia armada de actuais desempregados com um único propósito: cercar a Assembleia da República. Também pensei em crianças soldado, mas quero ser visto mais como um salvador da Pátria, não tanto como mais um tirano.

Todas saídas seriam prontamente vedadas e pedidos de ajuda impossibilitados. Uma vez entrincheirados no hemiciclo, todos os deputados ficariam automaticamente inscritos num magnífico jogo de sobrevivência. Dos 230 deputados (julgo eu, não me dei ao trabalho de ir confirmar esta ideia), apenas podia sair de lá um vivo se o conseguisse fazer pelo próprio pé. Tudo o que lá se passasse era transmitido 24 horas por dia pelo canal Parlamento, com transmissão gratuita pela TDT. Para animar as audiência, criava um chat interactivo que recebia mensagens por SMS dos espectadores. Numa de recordar os bons tempos do IRC, também conhecido por muitos como mIRC.

Debaixo dos lugares dos deputados, que nem coletes salva vidas, estariam 50 armas dispostas aleatoriamente (com excepção da Ana Drago que teria algemada ao pulso uma marreta de 14 quilos). Engane-se quem julga que as armas trariam vantagem. Seriam armas que nem na Idade Média eram práticas ou eficazes mas, por imposição das regras, os seus detentores eram obrigados a usá-las. Por exemplo:
- Matracas com punhais ao invés madeira;
- Capacetes com chavelhos protuberante mas que dificultem a visão e pesem sete quilos;
- Cadeiras de madeira maciça cujas pernas são espadas;
- Adagas de dois gumes, sem cabo, que teriam que ser manobrada pelas pontas dos dedos no lombo da lâmina;
- Um malho em aço que, de cada vez que é usado, o seu utilizador leva uma descarga eléctrica que o deixa inanimado por um período a rondar o minuto;
- Pistola de carregar pela boca e sem culatra, obrigando quem dispara, a tapar a cara para não ficar cego com a explosão da pólvora. No entanto, não evitaria queimar com gravidade o dedo do gatilho;
- Soqueiras de vidro;
- Etc., a imaginação é o limite.

Capacete de quatro quilos com dificultador de visão activado.
Capacete de quatro quilos com dificultador de visão activado.
Para apimentar os jogos, cada deputado teria uma pulseira com leds que iam mudando de cor ao longo do dia. A cor definia a sua equipa. O interessante desta regra é fácil de alcançar. No mesmo instante que o Nuno Crato estava a abrir a boca ao murro ao Miguel Macedo, a pulseira mudava de cor e eram obrigados a colaborar. É fácil imaginar a cena:
- O Crato ao tentar levantar o Macedo, que agora é da sua equipa, leva com o malho de aço do Jerónimo de Sousa que o electrocuta e caem os três inanimados no chão.

No fim do dia, a equipa que tivesse mais pontos, tinha direito a uma ração de batatas e cebolas. Mesmo que um deputado tivesse estado um dia inteiro na equipa vencedora e, em cima do apito final, mudasse para uma das equipas derrotadas, não comia na mesma. É injusto à primeira vista mas mais não é que muitas medidas impostas à população, a serem concentradas na classe política.

Um tema facilmente extensível a mais, que nos faria sonhar com uma realidade quase utópica.

terça-feira, maio 21, 2013

Plano de Evacuação: da teoria à prática

Muitos planos de evacuação são sugeridos e impostos, poucas oportunidades existem de os evocar, em situação alguma são cumpridos.

Parte I - Da Teoria


Divulgam-se os planos e são efectuados vários exercícios com a finalidade de treinar as pessoas. Marca-se dia e hora para a simulação, fazem-se soar as sirenes. Os delegados de segurança vestem coletes e metem capacetes com cerca de meia hora de antecedência para que o simulacro corra bem, aguardam pacientemente nas escadas do edifício o tocar do alarme de emergência para que a evacuação ocorra sem problemas e imprevistos.

Deixam-se terminar reuniões com gente que se julga importante e só depois se soam alarmes, atrasando toda a brincadeira. Faz-se o simulacro por piso, para não fomentar confusão nas escadas e outros acessos, todos ao mesmo tempo é gente a mais, gera pânico.

Seguem-se então as instruções dos referidos delegados. A massa humana dirige-se aos pontos de encontro através das saídas de emergência mais próximas. Os visitantes continuam acompanhados pelos visitados e tudo corre como esperado. As acções de cada um e o seu comportamento segue em total harmonia com a ISO qualquer coisa.

Outros são informados que não existe necessidade de evacuação total, que os visados serão formalmente instruídos pelas respectivas chefias. Se avivarmos que as ditas chefias são as primeiras a deixar de ser vistas (leia-se "as primeiras fugir para salvar o próprio coiro, qualquer que seja o custo"), então temos já baixas por antecipação.

Não toca o alarme numa das vezes, quando toca avisam que é teste. E se durante o teste há mesmo catástrofe? Tendo em conta que no teste há sempre falha de electricidade e não há gerador a diesel que funcione à primeira, fazendo o cheiro a plástico e metal curto-circuitado cheirar-se a quilómetros, não é difícil.

Todos respeitam um cardápio de normas ISO, mas todas estas ISO são feitas e doutrinadas por gente que nunca praticou nem presenciou uma evacuação séria. Nunca teve que sobreviver a uma qualquer catástrofe. Prova disto é estarem ainda vivos. Em qualquer calamidade eram mortalmente colhidos pelo fatífero pensamento burocrata e sentimento de preeminência intelectual que julgam deter.

Se há características que não definem as catástrofes são a sua consistência, estabilidade e previsibilidade.

Parte II - À Prática


Em caso de verdadeira emergência, com a Terra a tremer e pessoas a gritar em histeria, conseguia esta gente pintar mais depressa as calças de merda, do que vestir um colete sem nele ficar enrolado e nele se sufocar. Quem obrigou o adiar do simulacro pela dita reunião inadiável, achar-se-ia hierarquicamente superior e por certo exigiria tratamento distinto pela frente de chamas que consome o edifício. Por mim, podiam bem ser os primeiros a arder. Ao menos o fogo estava ocupado e não molestava outros.

Se não se pode usar o elevador, como é que se evacuam os aleijados? Jogam-nos pela janela? Ou são encaminhados na cadeira de rodas até junto das escadas “inspire fundo e pense em almofadas” e mal a criatura fechasse os olhos era baldada escadaria abaixo? Consulta-se um bruxo e consoante o seu parecer, as pessoas com deficiências de mobilidade são convidadas a não ir trabalhar nesse dia?

A realidade choca com a teoria. Tudo o que é bonito no conjunto e na imagem, falha no conteúdo a que se propõe. Além do mais está na genética humana, quando em situações de emergência e de elevação de adrenalina, disparar o instinto animal. No instinto animal há o sentido de sobrevivência que é erguido a valores que torna a pilhagem não só aceitável, como obrigatória. Não se pode esperar ordem e coordenação. Em caso de emergência, estamos mais com os pés no lado do tumulto do que na procissão.

Eu a ver-me numa situação de aperto, a primeira coisa que faria seria agarrar num objecto rombo ou pontiagudo. O importante é que seja uma boa e manobrável arma de defesa pessoal. Procuraria um bom agrafador ou o pé de uma cadeira, desde que fossem de metal.

Não se pode descobrir o que provocou a tragédia, pode ser sempre o começo de uma tragédia maior. Por isso é sempre recomendável preparar-nos para o pior cenário, para um mundo pós apocalíptico. Dito isto, não sugiro colher computadores portáteis pelo caminho. Para além de pesados, torna-se difícil o seu transporte em número. Apostar sim em telemóveis dos ditos smartphones. Com quatro ou cinco, para além de caberem todos nas algibeiras sem chatice e alarido, consegue-se um pé de meia para sustentar a nossa família por uns pares de meses. Levar dois portáteis para rua sem ninguém dar conta do espalhafato que é ter um volume rectiforme debaixo da barriga do casaco, é difícil. Muitas vezes com o pânico, continua o rato preso que nos denuncia arrastando-se pelo chão, chamando ainda mais à atenção. Que justificação dar?
A ideia que me fica destes simulacros é que estamos todos a sermos treinados para não sobreviventes.

sexta-feira, maio 03, 2013

Sushi - Um Desconchavo?

Há para aí uma tendência (ou trend, se utilizarmos o americanismo amaricado) para se gostar de sushi. Tendência que é acompanhada pela necessidade de exclusão social de quem não gosta de sushi numa de “faço aos outros o que fizeram a mim”.

Quando alguém não gosta de sushi é tão severamente criticado que acaba por gostar. Não que o paladar se adapte, mas porque as pessoas mentem com receio de mais represálias. Por isso mesmo é que quase toda a gente diz o mesmo “de início detestei, mas depois passei a adorar e é o meu prato favorito de sempre”. Se a Natureza nos mete a não gostar de algo, é porque o faz para representar o perigo de intoxicação. Se é amargoso, pode ter veneno, se é ácido pode estar verde, se está avinagrado, pode estar azedo. São defesas nossas que de tantas encrencas nos têm salvo. Ou seja, não compreendo o que leva as pessoas a insistir comer uma coisa que sabe mal na esperança que venha a saber bem. Quando tinha dois anos, experimentei areia da praia e não gostei. Nunca mais voltei a provar, um ensaio foi suficiente para não voltar a repetir. Se morrerem todas envenenadas pelo sushi, chama-se a isso selecção natural.

Não gosto de sushi. Posso ir mais longe, o sushi não presta. Reconheço que aquilo tem todo o aspecto para ser bom, só que depois não sabe a bom. Ou eu tinha as expectativas demasiado elevadas sobre o termo "sushi é muita bom" e sofri de reflexo condicionado invertido, ou aquilo é uma fraude mas toda a gente tem medo de passar por “fora de moda”(um tipo de o rei vai nu) ou ser apelidado de pobre. Nós pobres passámos muito tempo a comer coisas cruas, não queremos voltar lá. Não querer comer coisas cruas é considerado pindérico e de pobre por contraste com os ricos extravagantes das orgias romanas (um dos sinais da decadência de uma sociedade).

Em caso de obrigatoriedade de se comer sushi, num qualquer evento social com gente dentro (ou in, se, mais uma vez, utilizarmos o americanismo), o segredo para comer aquilo é fazê-lo de boca aberta com a língua recolhida ao pé do badalo para não lhe tomar o gosto.

O sushi está muito ligado ao mundo da moda, porque também ele é um prato da moda. No mundo da moda é prática corrente e socialmente aceite a Bulimia nervosa. Daí não custar nada comer “muito sushi” se depois se vomita tudo. Agora para pessoas de alimento como eu, trabalha muito o estômago.

Se fosse preciso comer este sushi todo para ver o resto, pronto, seria diferente. Havia uma motivação e um objectivo.
Uma vez levaram-me a um sushi dos ditos finos. Não fui ingrato. Agradeci, aceitei e tentei comer. Diz-se, aproveitando a frase do Fernando Pessoa a propósito de um outro produto, que primeiro estranha-se, depois entranha-se. Por isso mesmo repeti duas vezes para ver se a coisa se entranhava. À boleia foi também a vontade de não querer dar nas vistas por a experiência estar a ser menos saborosa do que era suposto. Só depois é que me lembrei que os finos não só não repetem, como deixam restos no prato. Por isso é que gostam de sushi.... por deixarem tudo no prato.

Já fui a outro e gostei porque tudo o que escolhi foi à chapa para fazer... Assim é que é falar!

terça-feira, abril 16, 2013

Bullying Parental

Há dias lembrei-me de um evento ocorrido estava eu no 7º ano. O gordo “fazia” anos e, em mais uma tentativa de fazer amigos e de ser, pelo menos, residualmente popular, convidou os colegas da turma. Finalmente era o centro das atenções, seria aceite e admirado por ser quem é, esperançava ele.

Com tanta gente num evento organizado para culto da sua pessoa, criou-se uma malha de realimentação positiva de nervoseira e histerismo, tão característica em festas com alminhas cuja puberdade ainda é coisa que está a ameaçar aparecer. Quando se é o aniversariante, a amplificação desta malha é gigantesca. Todos falavam a gritar enquanto tinham a boca cheia de porcarias, porcarias estas que eram dispersadas aos grumos em cada gargalhada que era solta sem qualquer constrangimento. Com os parabéns acabados de contar, algo cedo porque havia pais que já lá estavam para ir buscar as criaturas, algo de extraordinário se passou.

No meio da orgia de comida e algazarra, o pai do gordo, também ele visivelmente alterado com a agitação provocada pelo calor do momento, viu como única purga e resolução possível, dar sem qualquer aviso prévio, um estalo audaz e sonoro no próprio filho:

“Cala-te pah! Estou farto de t’ouvir!”

Silêncio total. À frente dos colegas da escola, todos reunidos à volta da mesa, observaram o gordo que tanto se habituaram a gozar, a ser humilhado pelo próprio pai. Fatias de bolo por cortar, gente por servir e o gordo com um sorriso estúpido a tentar ver por entre as lágrimas que lhe enevoavam os olhos sem cair.

No referencial do gordo, o mundo parou. Teve tempo de olhar na direcção de todos, tentando aguentar a expressão do iludido artista cujo espectáculo estava condenado desde a venda do primeiro bilhete. Um espectáculo em que só ele acreditava. Seria precisa a força de mil homens feitos para aguentar aquelas lágrimas. Assim que a primeira caísse. estava carimbado o passaporte para a catástrofe que tanto tentava evitar.

Que berreiro infernal saíram daquelas goelas enquanto todos os amigos se riam dele e o pai ia para o quarto irritado com a situação em que o filho o metera. Nem dos convidados foi autorizado a despedir-se, tal era a quantidade de ranho e baba que saía daquela cara avermelhada do choro e do estalo.

Qualquer percentagem de confiança e auto-estima que o gordo pudesse vir a acumular ao longo da sua vida, foi irreversivel e definitivamente boicotada.

segunda-feira, março 11, 2013

Largari ille Monstrum


No local onde geralmente sou obrigado a passar 8 horas por dia, mais qualquer coisa para cobrir esse conceito abstracto e sem definição axiomática que é “ fazer a extra mile”, tenho por hábito ir ao cubículo dos deficientes existente na casa de banho.

Se há coisa que me irrita, entre muitas outras, é estar em espaços acanhados. Essa irritação sobe de escalão quando me encontro desprotegido e vulnerável a “largar uma reguada”. Assim, ao ir à casa de banho dos deficientes, não só tenho espaço suficiente para esticar os braços acumulando, quando necessário, energias cósmicas para fazer força, como também posso repousar os cotovelos nuns agradáveis e bem pensados apoios laterais para braços. Toda a casa de banho devia ter uma maravilha do design de interiores de casa de banho como esta. Deve ter sido desenhado em Itália que eles costumam ter boas ideias aliadas ao requinte do bom gosto.

Há tempos, com os gritos de desespero de alguém no exterior deste cubículo a pedir sofregamente para eu sair que não conseguia usar as outras sanitas como música de fundo, inspirou-me a seguinte preocupação:

- Poderá este meu conforto num momento tão delicado, fazer de mim um monstro?

O trono do raciocínio
Apesar dos ininterrupto lamentos, não consegui abstrair-me da minha linha de raciocínio: Só existe um cubículo para deficientes por casa de banho. Ir à casa de banho deve dar-lhes tanto trabalho que só cá vêm (isto de dizer “cá” e não “lá”, não é de todo inocente) quando já não dá para aguentar mais. O equilíbrio entre “tenho vontade” e “ainda não justifica o trabalho de lá ir” tem uma calibração diferente que varia do deficiente para o dito normal. Quando cá chegam, geralmente estão no limiar do “não aguento mais” e não é um simples baixar as calças e largar lenha que os alivia. Há toda uma rotina apinhada de critical chains. Também não dá tempo para esperar, nem procurar um outro cubículo desocupado. Pode dar-se a catástrofe.

Concluí que eu é que estou bem e que nada é culpa minha. Quem está mal é o outro que joga à confiança com o facto de ser o único gajo sem pernas no piso inteiro. Só pensa nele e é egoísta. Nem o “ai que me borro todo!” tantas vezes repetido, me demove deste pensamento.

quinta-feira, janeiro 24, 2013

A Professora da Primária

A minha professora da primária veio do tempo da outra senhora. Havia bastante respeito pela professora Jacinta. Respeito esse que se intrometia com facilidade no pavor pelo castigo.


Não se podia ir à latrina, era sempre desculpa dos cachopos para não estarem na aula. Ir aos lavabos era uma versão mais grave de algo mau, que era ir ao recreio. Não só porque era durante o tempo da sagrada aula, como podiam ir tocar nas partes e isso é pecado, mesmo quando é para ir aliviar necessidades fisiológicas. Por este mesmo motivo, ocorreram vários acidentes. O Ricardo insistiu repetidamente e com algum nervosismo (e em cada repetição, ele insistia nervosamente) que queria ir à casa de banho Recebeu sem aviso um belo estalo de pouca velocidade mas de elevado momento, que lhe deixou a cara a palpitar entre o frio ártico e o calor vulcânico por estar a ser chato "vais depois no intervalo e se continuas nesse cismar, nem ao recreio vais". A consequência, o dito e conhecido "fazer nas calças", era sempre um mal menor que o eventual castigo.


Antes do intervalo, a sala começou a cheirar a café borrado com restos de sopa de couve lombarda e adubo industrial. O Ricardinho estava muito calado e com uma poça de mijo denunciadora à volta. Descobriu-se, como se não fosse evidente o suficiente, que se tinha cagado todo e voltou a acolher na cara um maduro banano por "então e não sabias pedir para ir à casinha de banho para ir fazer cócó seu porco?".

Humilhação total! Estar todo borrado, a chorar com soluços e ainda levar um estaladão no focinho. No fim, ainda ter que aguentar sentado em cima de um pastel frio como a angústia de ter toda a turma a olhar para ele.


Lembro-me também do dia da árvore, o qual nos trazia medo de um acesso de disciplina incontrolável por parte da Sr.ª professora Jacina. Afinal, tratava-se de um dia diferente dos outros. Plantar árvores no dia da árvore onde se promove a união com a Natureza e a harmonia entre os humanos, alimentava também um monstro personificado pelo castigo por fazermos algo que desconhecíamos que era errado.

Depois de plantada a nossa árvore, uma alegria quase divina apoderou-se de todos nós. Apenas a conseguimos exprimir correndo com uma felicidade capaz de acalorar o coração mais indiferente. Corremos com o mesmo cansaço que um inválido aquando sobre ele se manifesta um milagre que lhe recupera todas as suas faculdades motoras: nenhum. Que bonito, estávamos a ajudar a Humanidade. Chegado ao destino, a porta da sala, esperámos que esta fosse aberta. Qual não é o nosso espanto quando fomos obrigados a ficar à porta da sala, enquanto os outros continuavam no recreio, com direito a um saco da Junta de Freguesia da Ameixoeira com um rico farnel lá dentro: Capri-Sonne, pão de leite misto e caramelos de fruta Circo. Estávamos a ser excluídos sem sabermos o motivo.

Foi o primeiro exemplo claro na minha vida, de como se propaga uma onda. De início, estávamos todos encostados à parede, numa situação estacionária portanto. Todos com aquela euforia nervosa de quem se encontra na incerteza do que lá vinha a seguir, mas o que era, não era bom. Não era bom mas era inevitável. Após a aplicação do devido punitivo ao primeiro da fila, a emissão de um impulso, era óbvio o que vinha lá. O primeiro berrava de dor, o segundo chorava por simpatia ao primeiro. O terceiro estava só apreensivo mas, por osmose, já sentia a mão a arder. Do quarto para frente, ainda dava para rir e aumentava o riso, quanto mais afastados dos primeiros se estava.  A onda propagava-se.
Três reguadas estavam sempre garantidas. Caso alguém se fizesse de forte e tentasse não chorar, libertando apenas um "ai!" irreprimível, então a carga aumentava em número e intensidade. Acabam todos a chorar, velocidade de fase vs velocidade de grupo, só precisam de mais ou menos incentivo.


Os “outros”, que nos viam como os outros, da turma assistiam sentados e sorridentes, com um gozo, altivez e deleite estampados na cara, por terem sido "bonitos", bem comportados e estarem do lado da Sr.ª professora. A satisfação ao verem o nosso merecido castigo, era evidente. O regime protege e favorece quem pactua com ele e promove o inbreeding. Fantástico, começa-se de tenra idade a moldar cabeças.
Aos “outros”, espero que estejam a ter uma vida miserável, sem perspectivas de alegrias futuras ou ambições (sejam elas grandes ou pequenas). Isto para haver justiça contra a injustiça.


Houve também um concurso de guitarras no espaço da cantina. Mas só pude ir ver porque a Sr.ª professora não deixava participar, a turma dela só tinha meninos disciplinados à antiga, ou um bonito conjunto de potenciais imbecis. Estar a tocar “A Minha Casinha” dos Xutos & Pontapés em guitarra de ar, é uma descida na montanha russa que nos leva à heroína. Apesar da participação em massa da população cigana da escola no concerto, ganhou uma miudinha da primeira classe. Tocava que nem o Pete Townshend das guitarras de ar. Levámos um mês com medo do recreio e dos ciganos que nele andavam em patrulhas a fazer cobrar ao caroulo o concurso perdido.


A quantidade de porrada de régua de madeira que levávamos na mão era também proporcional à pobreza e à profissão dos pais. Igualdade de oportunidades o tanas. A partir do dia em que se soube qual a (profissão) do meu pai, passei de um extremo ao outro da escala. As notas novas, também se afastavam em espelho das antigas. Passei a ser convocado para fazer de juiz com a nobre de missão resolver conflitos no recreio. Obviamente que já dessa idade a lei estava para os ciganos, como a água está para o azeite, um não se entranha no outro.

Lembro-me também do meu amigo Daniel. Bom rapaz mas propenso à estupidez em igual quantidade. Olhou para a janela em busca de fuga para a aborrecida aula. Viu a Lua quase cheia, visível a olho nu em plena luz do dia e gritou: 

"Aííí vejam todos! Um planeta!" - e todos correram, movidos pelo fascínio de tão misterioso astro que se deixava avistar. Todos menos os “outros”.


"A Lua não é porque a Lua só aparece à noite!" -  disse o Carlitos, que além de muito rápido na corrida, era também muito inteligente, até andava com dois relógios, um digital para ver as horas e um analógico para ver quanto tempo faltava para as horas certas. Todos concordaram imediatamente com a pertinência e assertividade da observação.


Esse nosso espírito cientifico e gosto pelo desconhecido e pela sua descoberta, foi rapidamente interrompido por uma camada homogénea de reguadas em cada uma das mãos. Por vezes ainda comparo esta relação da professora Jacinta com os seus alunos, com a Inquisição e as grandes mentes que provaram a cicuta por terem sido contrárias aos escritos bíblicos.