terça-feira, maio 24, 2005

Anamnese Pueril

Recentemente, durante o pequeno-almoço, vi circo na televisão. "Já há algum tempo que não vejo circo", lembrei-me. Rapidamente recordei-me porquê. Acontece que, quando era pequeno, a coisa pela qual mais ansiava ver no "maior espectáculo do mundo" (que é um bluff (nunca compreendi muito bem esta palavra)), era pela entrada dos leões e/ou dos tigres em cena. Não tanto pelo número em si, mas pela possibilidade de os bichos se virarem ao "domador", um "artista" todo gingão que geralmente se apresenta com vestimentas bastante "leves": cores "leves" em perfumadas (com perfumes chineses à base de álcool em que apenas a embalagem tenta imitar um qualquer produto de marca, geralmente quem usa estes "perfumes" cheira, como se diz em linguagem de fadista, a "putas") camisas "leves" apinhadas de lantejoulas, calças de cabedal e botas em bico, ambos igualmente leves. O cabelo, à galã de tasca, apresenta-se cheio de laca com brilhantes e com uma enorme poupa a tentar assemelhar-se, de forma reles e barata, com a do Rei (Elvis, para os pobres em cultura) nos seus anos de ouro.

Tanto aparato quando afinal os bichos vão, para aquilo que devia ser a arena, já alimentados... bolas, assim também eu! Quando soube desta triste realidade fiquei de tal forma desiludido que julguei que toda a vida não passava de um embuste. Foi um estalo de angústia tal só equiparável ao recebido quando, aos 15 anos, fui confrontado com a inexistência do Pai Natal. Tamanhos desprazeres tenho eu sentido ao longo da minha curta vivência...

Era de esperar que, a receber as famintas feras, estivesse uma figura sinistra com um seboso cabelo farto em caspa, com uma vista vazada, uma perna mais curta que a outra (conferindo-lhe um certo e desajeitado mancar), dois buracos numa testa completamente desfigurada (consequência de uma prensagem por abocanhamento violento), ombro irreversivelmente deslocado, jardineiras de talhante com botas de borracha (usadas para jardinagem ou para cavar em valas) como farda, emanando um intenso e fortíssimo cheiro a mijo que agoni(z)ava toda a tenda, cheiro intensificado pela elevada temperatura que se fazia sentir. Cheiro esse provocado por uma incontinência já antiga, efeito retardado de uma ferida não devidamente suturada, resultado de uma patada abrupta na zona das virilhas sofrida há uma década atrás.

Este subjugador de bestas (o autêntico domador em toda a extensão da palavra), era forçado a entrar numa redoma em acrílico (não só não poderia trepar, como o sangue esguichado, que já não ia para à plateia, se tornava mais fácil de limpar), ao invés das grades de encher o olho ao pagode.
Teria de dominar as bestas durante singelos 15 minutos (mais ou menos o tempo que dura o Bolero de Maurice Ravel) para não saturar ninguém, bom... melhor dito, tinha que, penosamente, aguentar 15 espinhosos minutos sem ser dominado, para não ser violentamente mastigado, esquartejado e fustigado num festim medonho, num acto de carnificina horrenda e nauseante para todos os presentes, menos para os intervenientes como é óbvio.

De resto não há mais nenhum outro número onde os "artistas" se possam aleijar, o que é pena pois isso é que dá emoção e espectáculo, cada actuação era uma actuação diferente da anterior (não só pelas caras diferentes), era uma actuação onde se entrava em cena como se fosse a última vez. Por detrás das cortinas havia circenses despedindo-se das respectivas famílias em prolongado choro de comoção e saudade. Em cena, entravam vivos 25 e apenas regressariam 18 (num circo com gente experiente), sendo os outros recolhidos com pás para a neve e colocados em sacos de plástico pretos. Numa constante predadora roleta russa.

Mas nenhuma destas belezas do verdadeiro mundo do espectáculo acontecem, ora vejamos:
- os trapezistas, com rede à maricas, se caírem recebem palmas (como isto vai meu Deus... fazem asneira e em vez de pagarem a asneira com a própria vida não, ainda são aplaudidos) e tentam outra vez.
- no malabarismo já não usam objectos que lhes cortem as mãos em caso de erro, nem fogo... nem vale falar sobre o que é óbvio para todos, uma farsa!

Talvez deposite alguma esperança nos palhaços, considero mesmo que seja a actividade de maior risco no meio desta fantochada toda, não só pelas pinturas com tintas cancerígenas ou das atrocidades cometidas pelos mais novos (alguns depois vingavam-se mas esses neste momento estão do mesmo lado do tio Carlos, do menino Marçal ou do sr. embaixador se é que me faço entender), mas pelo seu elevado grau de depressivísmo. Estes, mesmo que tristes e deprimidos, têm que entreter e fazer rir a horda, aparentando sempre boa disposição. É terrivelmente desgastante e pode originar ideias destrutivas e suicidas.


Já me ensinou o meu avô: pimenta no cu dos outros para mim é refresco!

Por falar em feras... ontem (que quando escrevo isto aqui, já passaram uns dias) de manhã acordei acordei com as seguintes palavras vindas da janela do quarto: "Stallone, anda cá Stallone, deixa isso Stallone!"
Deveras intrigado, abri de imediato todo o estore (apesar de estar completamente nu, e com a jamba a 5cm do chão), para apaziguar a minha incessante curiosidade. Esperava eu ver um Mastim Napolitano ("Esta corpulenta e imponente raça teve origem em Itália durante o império romano, onde o próprio Júlio César reconheceu nele um poderoso cão de guerra ou para a arena junto com os gladiadores. (...) Nasce com cerca de 500g e aos dois meses tem já uns surpreendentes 12kg! Atinge o peso máximo por volta dos 3 anos onde precisa de comer cerca de 3kg de ração por dia, o dobro de um Rottweiler.", "Como dissuasor de criminosos, o Matim Napolitano é do mais perfeito que um cão pode ser. A sua aparência intimidadora, quer seja a cabeça quer o corpo, sugere um potencial de brutalidade sem precedentes e, enquanto que pode ser extremamente dócil com os membros da família e amigos, esta brutalidade pode facilmente tornar-se efectiva se a casa ou os donos forem ameaçados seriamente.") de volta de um homem inanimado e ensanguentado estendido por várias partes do chão. Qual não é o meu espanto quando, após ter passado a fase de encadeamento e o sangue ter voltado ao cérebro (isto de me levantar depressa tem desvantagens), vejo uma madame de idade, com uma pequena trela numa mão repleta de pulseiras de pechisbeque, atrás de um Yorkshire Terrier (daqueles muito anões e de pêlo comprido, laçarote lilás entre as orelhas, risco ao meio ao longo do corpo e com um temperamento de "só ao pontapé") que teimava em cheirar a "merda" dos outros cães, perdi logo toda a minha vontade de fazer o trabalho que tinha para fazer naquele dia... ai eu antes também não tinha vontade...? Ah... ai agora sou mentiroso é? Ah! Então sou calão é isso...?


Passado uns dias de ter escrito isto num papel de pastelaria (não foi de pastelaria porque é um papel ordinário e a tinta não agarra, mas podia ter sido), tive um encontro imediato com a fera, o Stallone. "Anda cá Stallone" e o corno em vez de ir ter com a dona (que por sinal não era velha (mas a descrição até assentava bem para dona do cão), mas sim uma rapariga moderadamente nova e que necessitava de uma cadeira em madeira maciça com 2 metros de largo para se sentar com um mínimo de conforto e segurança), a bola de pêlo infernal (bola... para mim uma bola é para dar pontapés, o mesmo se aplica aqui neste caso mais pontual) vinha lançada na minha direcção, com o nítido objectivo de me atrocidar uma perna ou duas (quem sabe três). Valeu-me um dos muitos carros que estavam estacionados ali por perto e para o qual subi, safando-me da investida. Temi pela minha vida, confesso que vi a Morte a cruzar-se à frente da minha vista.

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